Usucapião Extrajudicial: Celeridade versus complexidade
- Andressa Thomé
- 7 de mai.
- 8 min de leitura
Por Andressa Tiemi Thomé (OAB/BA 80.377)
Advogada especialista em direito tributário, civil e empresarial
Introdução
A usucapião, instituto jurídico que permite a aquisição da propriedade imobiliária pelo decurso do tempo, historicamente tramitava apenas pelo Poder Judiciário, frequentemente em processos longos e onerosos que se arrastavam por anos a fio. Na busca por modernização e desjudicialização, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou uma alternativa mais célere e potencialmente menos dispendiosa: a Usucapião Extrajudicial.
Este importante avanço foi regulamentado inicialmente pelo artigo 216-A da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), inserido pelo Código de Processo Civil de 2015, e posteriormente detalhado pelo Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça, que em seus artigos 398 a 423 estabeleceu um regramento minucioso. A nova modalidade permite que o reconhecimento da propriedade seja processado diretamente no Cartório de Registro de Imóveis competente, sem necessidade de intervenção judicial quando preenchidos determinados requisitos.
O Que é a Usucapião Extrajudicial?
A usucapião extrajudicial constitui um procedimento administrativo que tramita sob a responsabilidade do Oficial Registrador de Imóveis, com a finalidade de verificar o cumprimento dos requisitos legais necessários ao reconhecimento da aquisição originária da propriedade. Conforme estabelece o artigo 398 do Provimento 149/2023 do CNJ, este procedimento permite o reconhecimento não apenas da propriedade plena, mas também de outros direitos reais passíveis de usucapião, como o usufruto ou a superfície, diretamente no cartório da circunscrição onde o imóvel está situado.
É importante destacar que esta via não elimina a possibilidade da via judicial, mas a complementa, conforme expressa o art. 399, §2º. O interessado tem a faculdade de escolher entre o caminho judicial e o extrajudicial, considerando as particularidades de seu caso concreto. Outro aspecto fundamental é a obrigatoriedade de representação por advogado ou defensor público, como expressamente mencionado no caput do art. 399, garantindo assim a correta instrução do pedido e a defesa técnica dos interesses do requerente ao longo do procedimento.
Cabe ressaltar ainda que, seguindo o entendimento consolidado no direito brasileiro, não se admite a usucapião, seja judicial ou extrajudicial, de bens públicos, conforme previsto no §4º do art. 399.
Requisitos para o Pedido Inicial
O ponto de partida para a usucapião extrajudicial é a formalização de um requerimento direcionado ao Oficial de Registro de Imóveis. Este documento, que deve ser assinado pelo advogado ou defensor público, necessita atender aos requisitos do artigo 319 do Código de Processo Civil e especificar informações essenciais para a análise do pedido.
Primeiramente, deve-se indicar a modalidade de usucapião pretendida e seu fundamento legal. O ordenamento jurídico brasileiro prevê diversas modalidades, cada qual com seus requisitos específicos.
Na usucapião extraordinária, exige-se posse ininterrupta e sem oposição por 15 anos, independentemente de justo título ou boa-fé, prazo que pode ser reduzido para 10 anos se o possuidor estabelecer no imóvel sua moradia habitual ou realizar obras de caráter produtivo. Já a usucapião ordinária requer posse por 10 anos, com necessidade de justo título e boa-fé, reduzindo-se para 5 anos em casos específicos previstos em lei.
Para imóveis urbanos de até 250m², existe a usucapião especial urbana, que exige moradia por 5 anos ininterruptos. De modo similar, a usucapião especial rural aplica-se a áreas de até 50 hectares tornadas produtivas, também com exigência de 5 anos de posse. Há ainda a modalidade familiar, destinada a ex-cônjuges ou ex-companheiros que permaneceram no imóvel urbano de até 250m² após abandono do lar, requerendo apenas 2 anos de posse.
O requerimento deve também detalhar as características da posse, explicando como esta se iniciou, se foi adquirida de forma onerosa ou gratuita, e suas qualificadoras essenciais – mansa, pacífica, contínua e com animus domini (intenção de ser dono). É necessário informar a existência de edificações e benfeitorias, com as datas aproximadas de sua realização, elementos que corroboram a intenção de exercer a propriedade plena.
Caso o requerente necessite somar o tempo de posse de antecessores para completar o prazo legal (instituto da acessio possessionis), torna-se obrigatório informar o nome e o estado civil de todos os possuidores anteriores. Deve-se também indicar a matrícula ou transcrição onde o imóvel está registrado ou, quando for o caso, informar expressamente que o imóvel não se encontra matriculado ou transcrito. Por fim, é necessário declarar o valor estimado do bem, que servirá de base para o cálculo de emolumentos.
Documentação Indispensável
Se o requerimento é a base, a documentação que o acompanha constitui o coração do procedimento extrajudicial. A robustez e a completude das provas documentais são determinantes para o sucesso do pedido.
A ata notarial é possivelmente o documento mais emblemático da usucapião extrajudicial. Lavrada por um Tabelião de Notas, preferencialmente do município onde se localiza o imóvel, tem por objetivo constatar e atestar fatos relevantes para a comprovação da posse. O tabelião documenta o tempo de ocupação do requerente e seus antecessores, as características da posse (pública, contínua, incontestada), além da descrição do imóvel e suas peculiaridades.
Para elaboração da ata, o tabelião pode realizar diligências, inclusive comparecendo ao imóvel, colhendo depoimentos de testemunhas ou confrontantes, e anexando elementos probatórios como fotografias e documentos apresentados pelas partes. É fundamental compreender que a ata notarial, apesar de sua força probante decorrente da fé pública do tabelião, não estabelece ou confirma a propriedade por si só; ela serve como um poderoso instrumento de prova para instruir o pedido no Registro de Imóveis.
Outro componente essencial são a planta e o memorial descritivo, documentos técnicos que individualizam precisamente a área usucapienda. Estes devem ser elaborados e assinados por profissional legalmente habilitado, como engenheiro, arquiteto ou técnico em agrimensura, com a devida prova de responsabilidade técnica (ART, RRT ou TRT). Idealmente, devem conter a assinatura de todos os titulares de direitos reais registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e nas matrículas dos imóveis confinantes.
A ausência dessas assinaturas não impede o protocolo do pedido, mas obriga o Oficial Registrador a promover a notificação dessas pessoas para manifestarem seu consentimento ou oposição no prazo de 15 dias, sendo o silêncio interpretado como concordância. Em determinadas situações, como no caso de unidades autônomas de condomínio edilício ou loteamento regularmente instituído, a apresentação destes documentos pode ser dispensada se o imóvel já estiver precisamente descrito na matrícula.
Além da ata notarial, o requerente deve juntar documentos que corroborem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse. Isso pode incluir contratos como promessa de compra e venda ou cessão de direitos possessórios, recibos de pagamento de impostos como IPTU ou ITR, contas de serviços públicos em nome do requerente ou antecessores, notas fiscais de materiais de construção, declarações de imposto de renda e fotografias datadas, entre outros. O "justo título", documento que seria teoricamente hábil a transferir a propriedade mas contém algum vício impeditivo do registro, é requisito específico para a usucapião ordinária, embora documentos que demonstrem a cadeia possessória sejam importantes em todas as modalidades.
São também cruciais as certidões negativas, documentos que demonstram a ausência de litígio sobre a posse. Estas devem ser obtidas nos distribuidores da Justiça Estadual e Federal da comarca onde se situa o imóvel e do domicílio do requerente, em nome do requerente e seu cônjuge, do proprietário registral do imóvel e seu cônjuge, e de todos os demais possuidores anteriores e seus cônjuges, em caso de soma de posses.
Para imóveis rurais, o registro só ocorrerá após a apresentação de documentação específica, incluindo o recibo de inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) mais recente e quitado, e a certificação do INCRA de que o memorial descritivo georreferenciado não se sobrepõe a nenhuma outra área.
Processamento no Cartório
Uma vez reunida a documentação necessária, o advogado protocola o requerimento no Registro de Imóveis, iniciando o fluxo do procedimento administrativo. O pedido é recebido, autuado e prenotado, garantindo a prioridade do direito do requerente em relação a outros títulos que eventualmente sejam apresentados posteriormente sobre o mesmo imóvel. Os efeitos da prenotação são prorrogados até a decisão final.
O Oficial Registrador realiza uma análise preliminar da conformidade do pedido e da documentação. Caso a planta e o memorial não contenham a assinatura de todos os titulares de direitos, providencia-se a notificação pessoal destes, por correio com aviso de recebimento ou por meio do oficial de registro de títulos e documentos de outra comarca, se necessário. Os notificados têm 15 dias para manifestação, sendo o silêncio interpretado como concordância.
Os entes públicos (União, Estado/DF, Município) também são notificados, aplicando-se o mesmo prazo e consequência em caso de inércia. Após as notificações, ou concomitantemente a elas, o Oficial providencia a publicação de edital em jornal de grande circulação, visando dar ciência a terceiros eventualmente interessados, que terão 15 dias para se manifestar após o prazo de publicação.
Durante a análise, se o Oficial identificar dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderá solicitar esclarecimentos, documentos complementares ou determinar a realização de diligências. Em casos de ausência ou insuficiência de documentos para comprovar a posse, a normativa permite que essa prova seja feita através de um procedimento de justificação administrativa perante o próprio Registro de Imóveis.
Decisão e Seus Desdobramentos
Após a instrução completa, notificações, publicações e eventuais diligências, o Oficial Registrador proferirá sua decisão:
Se toda a documentação estiver em ordem, os prazos tiverem transcorrido sem oposição ou se eventuais oposições tiverem sido superadas, o Oficial emitirá uma nota fundamentada de deferimento e efetuará o registro da aquisição da propriedade por usucapião;
Se o imóvel não possuía matrícula, será aberta uma nova.
Se a usucapião atingir a totalidade de um imóvel já matriculado, o registro será averbado na matrícula existente
Se atingir apenas parte de um ou mais imóveis, será aberta nova matrícula para a área usucapida, com averbações nas matrículas de origem. A abertura de matrícula para imóvel edificado independe da apresentação de habite-se, facilitando a regularização de construções antigas.
Caso qualquer dos notificados apresente impugnação fundamentada ao pedido, o Oficial tentará promover a conciliação ou mediação entre as partes. Se bem-sucedida, o procedimento prossegue; se infrutífera, o Oficial lavrará um relatório circunstanciado e entregará os autos ao requerente, que poderá ajuizar a ação de usucapião judicialmente, aproveitando o trabalho já realizado.
Se persistirem dúvidas ou insuficiência documental que impeçam o Oficial de formar sua convicção sobre o preenchimento dos requisitos legais, ele rejeitará o pedido por meio de uma nota de devolução fundamentada. Essa rejeição na via extrajudicial não impede o ajuizamento da ação de usucapião no foro competente.
Efeitos do Registro e Custos
O registro da usucapião no Cartório de Imóveis tem natureza declaratória e constitutiva, gerando efeitos importantes. Por ser modo originário de aquisição da propriedade, o bem é adquirido livre de ônus preexistentes, ressalvando-se que restrições administrativas ou gravames judiciais regularmente inscritos dependem de cancelamento pela autoridade competente. Por não constituir transmissão, mas aquisição originária, dispensa-se expressamente o pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).
Quanto aos custos, o procedimento envolve emolumentos tanto no Tabelionato de Notas quanto no Registro de Imóveis. A ata notarial é considerada ato de conteúdo econômico, calculada com base no valor venal ou de mercado do imóvel. No Registro de Imóveis, pelo processamento são devidos 50% dos emolumentos previstos para o registro e, em caso de deferimento, mais 50% pela aquisição da propriedade. Diligências, notificações, editais e outros atos são cobrados separadamente, conforme a tabela de custas local.
Vantagens e Desafios
A principal vantagem da usucapião extrajudicial é, sem dúvida, a potencial celeridade. Em casos consensuais e bem instruídos, o procedimento pode ser concluído em poucos meses, contrastando com os anos que uma ação judicial costuma demandar. A previsibilidade dos custos também representa um atrativo considerável para quem busca regularizar sua situação imobiliária.
Os desafios, contudo, não são desprezíveis. A maior barreira é a necessidade de consenso ou ausência de oposição fundamentada, pois qualquer litígio efetivo inviabiliza a via extrajudicial. A complexidade da instrução documental também representa um obstáculo significativo – reunir todas as provas exigidas, obter plantas assinadas por todos os confrontantes e conseguir uma ata notarial robusta pode ser extremamente trabalhoso e demandar investimento inicial considerável. Mas isso não significa que seria menos oneroso na via judicial. A análise rigorosa do Oficial Registrador exige preparo documental impecável por parte do advogado.
Conclusão
A usucapião extrajudicial representa um avanço notável no sistema de regularização fundiária brasileiro, alinhado à tendência de desjudicialização e busca por eficiência. Oferece um caminho mais ágil para aqueles que preenchem os requisitos legais e conseguem demonstrar sua posse de forma clara e incontestada, com a concordância dos demais envolvidos. Exige, contudo, um nível elevado de organização, prova documental robusta e, idealmente, um ambiente de cooperação. A via judicial permanece como alternativa essencial para casos litigiosos ou de maior complexidade probatória.
A escolha do procedimento mais adequado e sua condução demandam, invariavelmente, a orientação qualificada e a atuação diligente de um advogado especialista em direito imobiliário, profissional capaz de navegar pelas nuances legais e procedimentais para garantir o reconhecimento do direito à propriedade de forma segura e eficaz.
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